Um pouco de conceito e história
O Almanaque é um estilo de publicação que originalmente se organiza em torno das estações do ano ou do calendário, oferecendo indicações de trechos literários, poesias, advinhações, dentre outros.
Ainda na antiguidade encontramos palavras que nos remetem à origem da expressão almanaque. Na antiga Grécia, por exemplo, Eusébio chamava de alamanakon os calendários egípcios. Para Nascentes (1955), a referida expressão vem do árabe almanakh, que significa lugar onde mandamos ajoelhar os camelos e, por conta disso, espaço onde se ouve contos. Além disso, o almanaque foi relacionado a estação, região ou clima.
De acordo com Correia e Guerreiro (1986) almanaque era uma espécie de presente oferecido pelos astrólogos, no início de cada ano, a soberanos do oriente, contendo informações sobre o movimento dos astros, especialmente do sol e da lua. Esta prática foi transferida posteriormente para o Ocidente, popularizando-se a partir do século XIX, com inserção em espaços rural e urbanos e em todas as classes sociais.
Durante o início do século XX, no Brasil, os almanaques também tiveram boa aceitação, estimulados especialmente pela indústria farmacêutica preocupada em divulgar os seus produtos. Os almanaques farmacêuticos aliavam publicidade comercial, normas familiares e projeto de higienização, mas também serviram para colaborar com o projeto de formação da identidade nacional brasileira.
Pelo fato de conter diversos gêneros textuais e ter uma caráter lúdico, a utilização do almanaque pode ser uma excelente estratégia para estimular a leitura e a escrita em qualquer ambiente social, especialmente na escola.
Um relato sobre a utilização didática do Almanaque
Uma vez participando de uma oficina sobre letramento, numa das formações continuadas do ProJovem Urbano, tive a oportunidade de conhecer um pouco da história dos almanaques no Brasil e de sua possibilidade pedagógica. A partir disso, na disciplina História da Infância e Multiculturalismo, estimulei estudantes a transformar artigos do livro organizado por Mary Del Priori (História dadas crianças no Brasil) em diversos gêneros textuais.
Para a elaboração de gêneros textuais refletimos sobre o que são e seus mais variados tipos. Além disso, compartilhei com os estudantes uma série de gêneros textuais que criei a partir de texto sobre as embarcações lusitanas no século XVI, de Fábio Pestana Ramos. Por meio dos pequenos textos criativos foi possível compreender um pouco do cotidiano de crianças nas embarcações de maneira lúdica.
Reunindo todos os textos que produzi e aqueles criados pelos estudantes, conseguimos organizar um almanaque.
Para mostrar como é rica essa experiência, compartilho com vocês uma cruzadinha, uma receita e um conto. São aqueles gêneros que criei e socializei junto aos estudantes.
Gêneros textuais
Cruzadinha
Receita para exploração de crianças nas embarcações lusitanas – século XVI
Ingredientes
50 Crianças pobres, órfãos ou de origem judia e cigana;
Oficiais, marujos, nobres e religiosos a gosto.
01 Embarcação com destino ao Brasil;
Modo de preparar
1. Recrute crianças de origem paupérrima na zona urbana de Portugal. Servem também as judias e ciganas;
2. Submeta-as a trabalhos próprios de adultos nas embarcações que forem para o Brasil ou para a Índia;
2. Submeta-as a trabalhos próprios de adultos nas embarcações que forem para o Brasil ou para a Índia;
3. Prive tais crianças de boas condições de vida entre os embarcados, oferecendo-lhes péssimas acomodações, alimentação de baixa qualidade e nenhum tipo de proteção.
4. Puna com castigos físicos os insubordinados, especialmente os grumetes;
5. Ofereça um tratamento diferenciado aos pagens, aos órfãos Del Rei e às crianças na condição de passageiros;
6. Dê preferência de acesso na balsa de salvamento (batel) aos adultos (oficiais e elemento da nobreza), quando a embarcação estiver à deriva.;
7. Em caso de risco de afundamento do batel, lance ao mar primeiramente as crianças.
Resultados
+ Exploração do trabalho infantil;
+ Abuso sexual de crianças por marujos, oficiais e passageiros;
+ Exposição a doenças como pneumonia, escorbuto, inanição, sarampo e caxumba;
+ Ampliação do índice de mortalidade infantil;
+ Sobreviventes com traumas para toda a vida;
+ Sentimento de impotência;
+ Transformação precoce de crianças em adultos pelo peso da dor e do sofrimento.
Conto: “Homem” ao mar!
Trinta dias em alto-mar! O tempo não parece bom para a tripulação, pois anuncia uma possível tempestade. O mar encontra-se agitado, pondo a nau de São Tomé em situação de instabilidade.
De repente, ouve-se o grito de um marujo:
- Homem ao mar!
- Coitado! Esse aí não vai sobreviver. Morrerá afogado ou devorado pelos tubarões – afirma um dos tripulantes que também observara aquela queda.
Em meio à tripulação, um dos nobres corre em direção ao Capitão e clama com desespero:
- É meu filho. Ajude-me a socorrê-lo.
- Ora, meu Senhor. Não temos como salvar o garoto. Será esforço inútil retornar a embarcação, pois ele já se encontra bem distante de nós e, quando chegarmos perto, provavelmente já terá se afogado.
- É meu filho, capitão. Ele sabe nadar. Tenho esperança ainda.
- Não sei se nadar será suficiente para que ele sobreviva, pois à espreita estão sempre os tubarões.
- Mesmo assim, quero que tentem salvá-lo. – grita furioso o nobre - Caso não me obedeça, sabes de minha influência junto à Coroa Portuguesa e que posso...
- Senhor, é preciso calma. Faremos o que for possível!
Dirigindo ao mestre e ao piloto da nau, o capitão ordenou:
- Façam o que nos pede este ilustre homem. Rápido!
Todos os marinheiros ajudaram a deitar o esquife ao mar, para que a nau fizesse a volta, mas esforço foi inútil. Depois de 2 horas do momento da queda, o corpo do menino fora encontrado sem vida.
Referências
CORREIA, J. D. P., e GUERREIRO, M. V. - Almanaques ou a Sabedoria e as Tarefas do Tempo. Revista ICALP, vol. 6, Agosto/Dezembro de 1986, 43-52.
NASCENTES, Antenor. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Rio: Globo, 1955.
RAMOS, Fábio Pestana. A história trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI. pp. 19-54. In. DEL PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no Brasil. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2007.
Clique aqui e baixe um texto-roteiro para elaboração de um Almanaque.
1 comentários:
Amei seu trabalho. Estou criando um almanaque com meus alunos do sétimo ano e foi muito enriquecedor seu conteúdo. Grata.
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